Fissura Anal

Definição

  A expressão Fissura Anal, como afecção proctológica distinta, define a presença de uma úlcera superficial benigna na pele do canal anal.

Etiologia

  Crianças - Em crianças, a fissura anal geralmente está associada à constipação intestinal. O bolo fecal, volumoso e endurecido pelo ressecamento, esgarça a pele da região posterior do canal anal. Neste local, a pele está intimamente aderida ao esfíncter interno e não cede facilmente à passagem do conteúdo fecal calibroso.

  Adultos - Em adultos, em geral, não se consegue apontar uma causa que possa ser isoladamente responsável pelo aparecimento de fissuras anais. Ainda assim, o parto normal tem sido responsabilizado pelo aparecimento de fissuras anais em mulheres, bem como o trauma perineal que redunda do parto normal, que provocaria retração cicatricial e acolamento anormal da submucosa anterior do canal anal. Estas duas eventualidades explicariam a maior predisposição das mulheres para fissuras anais anteriores.

   Da mesma forma que nas crianças, a constipação intestinal também tem sido responsabilizada pelo surgimento de fissuras anais em adultos de ambos os sexos, produzindo fissuras anais posteriores por trauma sobre aquela região do canal anal.

   A diarréia também tem sido implicada como causa de fissuras anais pela acidez das fezes eliminadas, com produção de erosões cutâneas superficiais que evoluem para fissuras.

   A história de doenças anais prévias também tem sido levantada em muitos pacientes portadores de fissura anal. Provavelmente, a retração cicatricial que resulta do selamento de feridas anais outrora existentes enrijece localmente o canal anal, por acolamento tecidual fibrótico, tornando a pele adjacente vulnerável ao rompimento, caso seja demasiadamente estirada (especialmente pela passagem de fezes duras e volumosas).

   Traumatismos anais pela introdução de corpos estranhos no canal anal, seja para fins terapêuticos (termômetros, supositórios, bicos de dispositivos para lavagem intestinal, etc.), seja para fins eróticos, ou por acidente (empalamento, queda a cavaleiro) são descritos como causa de fissuras anais.

   O tônus elevado de repouso do músculo esfíncter interno do ânus tem sido responsabilizado pelo aparecimento de fissuras anais em determinados indivíduos. Neles, o ânus estaria submetido normalmente a uma força maior de fechamento, que se oporia à passagem de fezes mais volumosas. Estando a pele de revestimento do canal anal ajustada anatomicamente a conviver com este canal de menor calibre, não suportaria dilatações maiores do que está acostumada a sofrer para a eliminação fecal. Fezes volumosas então, ao serem eliminadas em canais anais de indivíduos com hipertonia esfinctérica interna, romperiam o tegumento por estiramento demasiado e provocariam o aparecimento de fissuras anais. 

Patologia

   A fissura anal primária tipicamente possui um formato fusiforme (assemelha-se ao formato de uma canoa) e as fibras do músculo interno do ânus podem normalmente ser vistas em seu leito. Situa-se na pele modificada do canal anal, abaixo da linha pectínea, mas para dentro do orifício anal. Uma fissura anal primária não costuma invadir a linha pectínea. (Apenas para lembrar, o canal anal cirúrgico possui cerca de 4 cm de extensão, sendo seus 2 cm distais, situados abaixo da linha pectínea, recobertos por pele modificada, desprovida de fâneros.)

   A fissura anal pode ser aguda ou crônica. A fissura anal aguda é superficial e sua base é formada por tecido conjuntivo frouxo. Suas bordas são cortantes e não há endurecimento tecidual circunjacente. Costuma cicatrizar rápida e espontaneamente e muito provavelmente a maioria de nós já a apresentou várias vezes, com maior ou menor expressão clínica. A fissura anal crônica, por outro lado, costuma ser reconhecida por uma tríade diagnóstica: plicoma sentinela, fissura anal propriamente dita e papilite hipertrófica. Em seu leito podem ser vistas as fibras transversas do músculo esfíncter interno e suas bordas são endurecidas, elevadas e arredondadas. O plicoma sentinela e a papilite hipertrófica são formados pelo edema inflamatório que resulta da presença da úlcera anal profunda que não cicatriza. É comum ocorrer infecção superficial no leito da fissura, que é causa de sintomas de ânus úmido, e em alguns casos a fissura pode evoluir para a formação de um abscesso/fístula anal. (Figura 1)

   A fissura anal ocorre normalmente na linha média posterior (6 h), mas em 20% das mulheres que apresentam fissura anal, a afecção costuma ser encontrada na linha média anterior (12 h). Uma explicação plausível para estes achados ainda não foi dada.

   A hipertonia do músculo esfíncter interno é um achado invariável em casos de fissura anal primária, não se sabe se como causa da afecção ou conseqüência dela. A exposição de terminações nervosas sensitivas no leito da fissura, provocando dor, leva à contração voluntária do esfíncter externo e o processo inflamatório presente na fissura leva à contração involuntária do esfíncter interno, que fica em estado de permanente hipertonia.

Incidência

  A fissura anal em geral incide mais em homens do que em mulheres e esta difereça se faz notar principalmente a partir da segunda década de vida. Em crianças e adolescentes, no entanto, a fissura anal é uma doença mais encontrada em indivíduos do sexo feminino.

   A distribuição etária da fissura anal é maior entre os 20 e 40 anos de idade.

   É difícil de estimar a incidência da fissura anal na polulação geral, mas, num ambulatório universitário de Coloproctologia na cidade de Birmingham (Inglaterra), observou-se que 9% dos pacientes que procuravam a instituição por queixas proctológicas o faziam por causa de uma fissura anal.  

Quadro Clínico

   Crianças - Em geral choram ao defecar por estarem eliminando fezes volumosas e ressecadas, que rompem o tegumento anal e provocam pequeno sangramento. A fissura anal é uma das causas mais comuns de sangramento anal em crianças. Indivíduos desta faixa etária com fissura anal em geral apresentam constipação intestinal, que pode ser causa ou conseqüência da doença anal.

   Adultos - Os sintomas mais apresentados por adultos com fissura anal são dor ao defecar com sangramento vivo, aumento de volume orificial e, ocasionalmente, ânus úmido. No início do quadro a dor sobrevém principalmente com a defecação, mas, com a cronificação do processo, até andar pode ser doloroso, que dirá rir ou espirrar (toda a atividade que demande contração dos esfíncteres anais será cruel para com o portador de fissura anal crônica)! Em casos arrastados de fissura anal crônica ocorre o aparecimento do plicoma sentinela. Pode também ocorrer edema orificial pelo processo inflamatório crônico. Em situações avançadas, o ânus úmido (pela eliminação de secreções anais serosas ou seropurulentas) e o prurido anal podem ser observados. Ocasionalmente, um paciente com fissura anal crônica pode apresentar sintomas urinários, tais como polaciúria e disúria.

Diagnóstico

   O diagnóstico de fissura anal é feito pelo exame físico (proctológico) do paciente. Normalmente, o diagnóstico pode ser feito apenas pela inspeção e, na maioria dos casos, é bom que não se faça nada além dela, pois os pacientes já estão apavorados com a idéia de que o exame retal vai causar-lhes uma dor insuportável. Entretanto, a inspeção deve ser adequadamente realizada, senão deixará de evidenciar a fissura. Deve-se ter em mente que o paciente, com medo, contrai voluntariamente as nádegas e, por causa da dor da fissura, apresenta o ânus demasiadamente contraído. Tudo, então, contribui para que a região da pele modificada do canal anal não seja exposta adequadamente e a fissura não possa ser evidenciada. Deve-se conquistar a confiança do paciente, acalmá-lo e examiná-lo afastando firme e continuamente a pele das nádegas justa-orificial. A tração firme e continuada da pele perianal acabará vencendo o tempo de contração tônica voluntária do esfíncter externo, que em geral não ultrapassa 30 segundos, e o orifício anal relaxar-se-á. Pede-se então ao paciente para produzir a manobra de Valsalva (fazer força para defecar) e poder-se-á observar a descida perineal, por relaxamento da musculatura levantadora do ânus e, com o relaxamento associado dos esfíncteres anais, a pele modificada do canal anal será evertida. É nela que a fissura anal será observada. O primeiro exame deve parar por aí e o paciente deverá ser tratado, para, após algumas semanas, ser reexaminado, desta vez com manobras invasivas. A presença de um plicoma externo não é sinal de que o paciente seja portador de fissura anal! Entretanto, se não for descoberta uma fissura anal à inspeção, o toque retal deverá ser realizado com cuidado, para afastar a presença de outras afecções (como um abscesso interesfinctérico ou submucoso).

   No segundo exame, após o tratamento inicial da fissura anal, o paciente, sem dor ou com ela acentuadamente diminuída, será submetido a um toque retal. Notar-se-á em geral uma hipertonia esfinctérica. Em casos de fissura anal crônica, as bordas da fissura estarão endurecidas e poder-se-á evidenciar a presença de um nódulo intra-anal doloroso e pediculado (a papila hipertrófica).

   Todos os pacientes com fissura anal devem ser examinados por meio de uma retossigmoidoscopia, para afastar a presença de afecções concomitantes. Hemorróidas são observadas em associação com fissuras anais em até 1/3 dos pacientes. Com a retossigmoidoscopia poderão ser detectadas papilas anais hipertróficas, fístulas anais, estenose anal e abscessos interesfinctéricos, todas afecções que podem cursar concomitantemente com fissuras anais. O exame retossigmoidoscópico poderá detectar também afecções não correlatas em até 11% dos casos, tais como proctite, pólipos adenomatosos, condilomas, etc.

   O exame proctológico completo com retossigmoidoscopia reveste-se de importância fundamental no diagnóstico diferencial entre fissura anal primária e secundária. A fissura anal secundária em geral não é mediana, sendo lateral; não possui formato fusiforme, sendo irregular; não é única, havendo normalmente mais de uma; apresenta bordas infiltradas e produz mais secreção do que a fissura anal primária, por cursar, em maior grau, com infecção. Também não obedece a localização da fissura anal primária, invadindo a pele perianal ou subindo além da linha pectínea, e normalmente é mais profunda, por vezes provocando destruição muscular subjacente. A fissura anal secundária pode ser observada em pacientes com Doença de Cröhn, retocolite ulcerativa idiopática, tuberculose intestinal, prurido anal, carcinoma anal, sífilis, herpes anal, cancro mole, AIDS (por herpes anal, sarcoma de Kaposi, infecção pelo citomegalovírus, ou linfoma de células B) e leucemia.

   Se um exame adequado do paciente não pôde ser realizado ambulatorialmente, o paciente deve ser examinado sob anestesia.

   No caso de fissuras anais primárias, a investigação pode cessar com a retossigmoidoscopia. Por outro lado, diante de uma fissura anal secundária, uma investigação mais completa do paciente será mandatória, com enema opaco, colonoscopia, exames hematológicos, microbiológicos e de investigação imunológica, segundo a suspeita diagnóstica levantada. 

   Algumas vezes um paciente com uma dor muito semelhante à fissura anal, porém sem sangramento anal, poderá nada apresentar ao exame físico. Deve-se cogitar estar diante de uma caso de proctalgia fugax.

Tratamento

   Todo o tratamento da fissura anal primária está voltado para o relaxamento do esfíncter interno, que, conseguido, causará desaparecimento da dor e facilitará a cicatrização da fissura.

   O tratamento inicial da fissura anal primária deve ser clínico, pois até 40 % dos casos da doença cicatrizam com esta conduta.

   Como normalmente os pacientes apresentam constipação intestinal, eles devem ser orientados a observar um dieta rica em fibras não processadas (pois as fibras adsorvem água, encorpando e amolecendo as fezes), a ingerir bastante líquidos durante o dia (para hidratar as fezes e amolecê-las) e a obedecer o reflexo gastrocólico, principalmente o matinal, após o desjejum. Deve-se aconselhar aos pacientes que abandonem o uso do papel higiênico para diminuir o trauma local à pele anal, já "sofrida" com a presença da fissura.

   Pomadas, geléias e cremes de uso tópico com medicações anestésicas e antiinflamatórias têm sido empregadas na prática clínica com sucesso, talvez principalmente porque alviem a dor.

   O amolecimento das fezes com o emprego de moderadores do trânsito intestinal (metilcelulose, ispágula ou estercúlia), que são laxantes por aumentarem o volume das fezes às custas de adsorção hídrica é fundamental em pacientes com constipação intestinal. Uma medicação útil é o pó solúvel da semente do psyllium, que amolece as fezes e provoca defecações fisiológicas e confortáveis.

   O emprego de banhos de assento mornos freqüentes alivia a dor da fissura anal por promover relaxamento esfinctérico. O calor úmido possui propriedades antiinflamatórias e analgésicas.

   O uso associado de moderadores do trânsito intestinal, preparados anestésicos/antiinflamatórios de uso tópico anal e banhos de assento mornos chega a cicatrizar até 80 % das fissuras anais agudas observadas ambulatorialmente. O índice de recidiva, no entanto, chega a ser elevado.

   Recentemente tem sido descrito o emprego tópico anal de preparados com nitroglicerina a 0,2% em veículo gelatinoso em pacientes com fissura anal. A nitroglicerina é degradada metabolicamente, liberando óxido nítrico, que é um um potente vasodilatador e provoca relaxamento da musculatura lisa. Relaxando o esfíncter interno, haverá maior possibilidade de cicatrização da fissura. Índices de cicatrização de até 80 % em 8 semanas com o emprego de preparados contendo nitroglicerina têm sido descritos, com taxa de recidiva da fissura muito baixas (< 3%). A cefaléia tem sido descrita em alguns pacientes que utilizam tal tipo de terapêutica. 

   Uma outra substância que tem sido utilizada ultimamente, com excelentes resultados, em pacientes com fissura anal é a toxina botulínica. O produto é injetado localmente e promove o relaxamento esfinctérico esperado para que a fissura cicatrize, sem apresentar a cefaléia descrita em alguns dos pacientes que utilizam os preparados à base de nitroglicerina. Há indícios na literatura de que os resultados obtidos com a toxina botulínica são superiores aos observados com os preparados a base de nitroglicerina (Resumo 1).

   Os pacientes que não respondem ao tratamento clínico em 4 a 8 semanas devem ser tratados cirurgicamente. A técnica cirúrgica que atualmente confere os melhores resultados é a esfincterotomia anal interna lateral subcutânea, que pode ser feita até com anestesia local (bloqueio hemorroidário inferior). Nela, após a anestesia, introduz-se uma lâmina 11 de bisturi no sulco interesfinctérico (existente entre os esfíncteres anais interno e externo) na posição das 3 h (olhando-se de frente para o orifício anal do paciente em posição de litotomia) e secciona-se o terço inferior do esfíncter interno, sem causar lesão no revestimento interno do canal anal. A pequena ferida cirúrgica orificial resultante cicatrizará horas depois e o paciente normalmente obtém alívio imediato da dor. Não há necessidade de excisar a fissura, o plicoma ou a papila hipertrófica, pois em geral, com a cicatrização da fissura, estes dois últimos apresentarão redução de volume. Quando o plicoma e a papila forem exageradamente hipertróficos, eles poderão ser excisados, mas a esfincterotomia sempre deve ser feita lateralmente, e nunca no leito da fissura, para que não ocorra incontinência pós-operatória pelo defeito cicatricial em "buraco de fechadura" que se formará.

O tratamento de fissuras anais secundárias está voltado primeiramente para o tratamento da doença de base. Na maioria das vezes, controlando esta, a fissura acaba cicatrizando. Quando não, procede-se ao tratamento como para a fissura anal primária.

Prognóstico

   O tratamento clínico da fissura anal primária é eficaz em cerca de 70% dos pacientes sem plicomas sentinelas e em apenas 47% dos com. Neles, apesar de um elevado índice de cicatrização inicial com as medidas clínicas adotadas, a fissura acaba retornando.

   O resultado da esfincterotomia lateral interna subcutânea (ELIS) é melhor do que o obtido pelo tratamento clínico, dando índices de recidiva de apenas, em média, 0 a 2 %.

   Após o advento da ELIS os índices de complicações da cirurgia da fissura anal diminuíram acentuadamente. Graus variados de  incontinência, comuns nos métodos cirúrgicos antigos de tratamento de fissuras anais, caíram para, em média, 6% com a ELIS, e, com ela, em geral, só ocorrem graus menores de incontinência.

Bibliografia

1. GOLIGHER, J. - Surgery of the Anus, Rectum and Colon, 5th ed., London, Baillière Tindall, 1984. 1186 p.

2. GOLIGHER, J. - Cirurgia do Ânus, Reto e Colo. 5.ed. São Paulo, Manole, 1990. 1277p.

3. KEIGHLEY, M.R.B. & WILLIAMS, N. S. - Surgery of the Anus, Rectum and Colon, London, W. B. Saunders Co. Ltd., 1993, 2448 p.

4. KEIGHLEY, M.R.B. & WILLIAMS, N. S. - Cirurgia do Ânus, Reto e Colo, São Paulo, Editora Manole Ltda., 1998, 2448 p.

6. ZUIDEMA, G. D. & CONDON, R. E.- Shackelford’s Surgery of the Alimentary Tract, 3rd. ed., Vol. IV - Colon, Philadelphia, W. B. Saunders Co. Ltd., 1991, 426 p.

7. http://www.rxmed.com/illnesses/anal_fissure.html (resumo em tópicos sobre a fissura anal).

8. http://www.gicare.com/pated/ecdgs38.htm (site da Jackson Gastroenterology, uma clínica especializada em doenças do sistema digestório).

9. http://www.nyschp.org/the_pharmacist/0899/KAUFMAN.html (trabalho de compilação sobre os efeitos do tratamento tópico de fissuras anais com a nitroglicerina; apresenta a formulação do preparado).

10. http://www.nejm.org/content/1999/0341/0002/0065.asp (atualização terapêutica - contribuição, em 8/7/99, de Gustavo Aguiar, aluno do 7º período do Curso de Medicina da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade do Amazonas).