Definição |
Abscesso é uma
cavidade formada por paredes de tecido fibrótico ou de granulação que contém pus em
seu interior. Fístula advém do latim fistula e quer dizer cano, flauta ou cana. É um trajeto em constante processo de granulação que une duas superfícies revestidas por tecido epitelial (cutâneo ou mucoso). Quando situados na região anorretal, associam-se de forma tão
freqüente que vêm sendo considerados estágios evolutivos da mesma doença (abscesso na
fase aguda, fístula na crônica), e recebem a denominação de abscesso-fístula anal, ou
abscesso fistuloso. Entretanto, a bem da verdade, nem todo abscesso anal evolui
necessariamente para uma fístula e nem todo paciente com fístula anal conta uma
história pregressa de abscesso. |
Abscessos
Anorretais Primários Os abscessos anorretais primários originam-se ou de uma infecção cutânea ou de uma infecção de uma glândula anal. Os abscessos de origem cutânea normalmente evoluem da infecção de folículos pilosos ou de glândulas apócrinas e em geral são causados por estafilococos. Não costumam abrir-se para o canal anal e sua drenagem não redunda na formação de fístulas. Os abscessos originados da infecção de uma glândula anal (de origem criptoglandular) em geral acumulam-se no espaço interesfinctérico e dele partem para abrirem-se para o períneo, para os espaços supralevantadores, ou, ao atravessarem o esfíncter externo, para a fossa isquiorretal. Tais abscessos são causados por bactérias intestinais e evoluem para a formação de fístulas. São os mais freqüentemente observados na clínica. Teoria Criptoglandular Para entendermos a teoria que atribui à maioria dos
abscessos/fístulas anais uma origem criptoglandular, devemos antes nos recordar da
anatomia da região anorretal, no que diz respeito aos espaços paraanais. Clique na seta
abaixo para uma revisão da anatomia anorretal. Pois a teoria criptoglandular explica que a maioria dos abscessos anais origina-se da obstrução do óstio críptico de uma ou mais glândulas anais, provocando infecção por acúmulo de material séptico em seu interior (pela luz das glândulas anais transita material mucofecalóide). A causa da obstrução do óstio glandular na cripta anal é variada, sendo, em geral, provocada por trauma fecal ou por corpos estranhos. Os abscessos se formam, então, inicialmente no espaço interesfinctérico e dele progridem para ocupar um dos espaços paraanais. Os abscessos recebem o nome do espaço paraanal que ocupam. Vide, clicando na seta abaixo, a classificação dos abscessos anorretais.
Abscesso Anorretal Secundário Várias afecções podem ser causa de abscessos anorretais. As doenças inflamatórias intestinais (Doença de Cröhn e Retocolite Ulcerativa Idiopática) costumam cursar com supurações anorretais, principalmente a Doença de Cröhn. A Tuberculose também é causa importante de processos infecciosos anais causados por germes específicos. Outras infecções anais específicas que levam à formação de abscessos são as causadas pela Legionella, a Actinomicose, a Amebíase, a Nocardiose, a Esquistossomose, e algumas infecções fúngicas. Certas afecções coloproctológicas costumam associar-se à formação de abscessos anais. São elas o Carcinoma anorretal, lesões traumáticas da região anorretal, doenças perianais (Fissura Anal; Trombose Hemorroidária Externa; complicações de hemorroidectomias, de escleroterapia hemorroidária, de ligadura elástica de hemorróidas), Salpingite, Doença Diverticular, Carcinoma do intestino grosso, Apendicite Aguda. Algumas doenças sistêmicas podem apresentar manifestações supurativas anais. Dentre as descritas estão a pancitopenia causada por determinadas discrasias sangüíneas e quimioterapia, a Diabetes Mellitus, a Sífilis e a AIDS. Fístulas Anorretais As fístulas anorretais evoluem, em sua grande maioria, dos abscessos anorretais. Porém, há abscessos que não se complicam com a formação de fístulas e há fístulas que, pelo menos aparentemente, não evoluíram de abscessos. Para as fístulas que evoluíram de abscessos, a etiologia daquelas acompanha a que deu origem a estes. Há, no entanto, outras causas esporadicamente citadas de fístulas anorretais, como as congênitas, observadas em alguns recém-natos. As fístulas anorretais classificam-se segundo sua disposição
horizontal e vertical. Vide, logo abaixo, a classificação das fístulas
anais. |
Abscessos Anorretais Os abscessos anorretais classificam-se de acordo com o espaço paraanal que ocupam, recebendo o nome deste. Sendo assim, podem ser: perianais (ou isquioanais), submucosos, interesfinctéricos, isquiorretais, e supralevantadores (ou pelvirretais).
Fístulas Anorretais As fístulas classificam-se segundo sua disposição horizontal e vertical. Disposição Horizontal As fístulas podem ser anteriores ou posteriores à linha biisquiática, que divide imaginariamente o orifício anal em duas metades e vai de uma espinha isquiática à outra. Segundo a regra de GoodSall (1900), as fístulas que possuírem orifícios externos anteriormente situados em relação à linha biisquiática terão um trajeto retilíneo e terminarão na linha pectínea, num orifício interno situado em horário correspondente ao do orifício externo (orifício externo às 2 h levará a um orifício interno às 2 h). Por outro lado, fístulas com orifícios externos situados posteriormente à linha biisquiática possuem um trajeto curvilíneo que dirige-se para uma cripta às 6 h, na linha pectínea (orifícios externos às 4, 7 ou 8 h levarão a um orifício interno às 6 h). Sendo assim, as fístulas anteriores costumam ser retilíneas e as posteriores curvilíneas. Muito embora a maioria das fístulas obedeça à regra de GoodSall, há várias exceções, que devem ser tidas em mente por ocasião do tratamento da afecção. Ocasionalmente, um abscesso que comprometa uma das fossas isquiorretais pode alastrar-se para a fossa isquiorretal contralateral, penetrando-a através do espaço retroesfinctérico. Forma, desta feita, um abscesso em ferradura. Disposição Vertical Várias classificações das fístulas, segundo a disposição vertical que assumem, foram descritas, mas, de uma forma simplificada, as fístulas podem ser basicamente subcutâneas (fistuletas), interesfinctéricas, transesfinctéricas, supraesfinctéricas e extraesfinctéricas. As fístulas subcutâneas estão sob a pele perianal e não comprometem o esfíncter interno. Em geral são retilíneas e posteriores, desobedecendo a regra de GoodSall. Associam-se com freqüência a fissuras anais. As fístulas interesfinctéricas atravessam o esfíncter interno e correm no espaço interesfinctérico, podendo nele cursar em sentido cranial ou caudal. Quando ascendem no espaço interesfinctérico, costumam terminar em fundo cego, mas podem alcançar até acima da alça formada pelo músculo puborretal, contorná-la e prosseguir no plano intermuscular até perfurá-lo, ora para o espaço supralevantador, ora através da musculatura levantadora para o interior da fossa isquiorretal. Quando seguem um sentido caudal, abrem-se para a pele perianal num orifício secundário. As fístulas transesfinctéricas perfuram o esfíncter interno e o externo indo atravessar o espaço isquiorretal, de onde descem e perfuram a pele perianal no orifício secundário. Podem ser altas ou baixas, de acordo com a situação de seu trajeto em relação ao anel anorretal. Podem ser em ferradura (oriundas de abscessos isquiorretais em ferradura), ao possuírem trajeto numa e noutra fossa isquiorretal, que se continua através do espaço retroesfinctérico, contornando o ânus posteriormente. As fístulas supraesfinctéricas iniciam-se num orifício interno situado na linha pectínea, ascendem pelo plano interesfinctérico até acima do músculo puborretal, contornam-no, perfuram a musculatura levantadora, adentrando a fossa isquiorretal, atravessam-na e perfuram a pele perianal no orifício externo. As fístulas extraesfinctéricas não guardam, como o próprio nome
diz, relação com a musculatura esfinctérica do canal anal. São laterais a ela. Em
geral, possuem origem iatrogênica. Podem também ser causadas por processos supurativos
pélvicos (ginecológicos ou intestinais) que drenam por necessidade através do diafragma
pélvico para uma das fossas isquiorretais e, dela, para o exterior. |
As
supurações anorretais, sejam elas abscessos ou fístulas, são mais freqüentemente
encontradas em indivíduos do sexo masculino nas 3ª e 4ª décadas de vida, sendo a
relação sexo masculino/sexo feminino de 3-4/1. As fístulas
mais comumente encontradas na prática clínica diária são as
interesfinctéricas. |
Abscesso
perianal Dor, calor, rubor, aumento de volume na região do espaço perianal (isquioanal), em geral posterior ou lateralmente, e dificuldade para andar e sentar. Febre e sintomas de comprometimento do estado geral não são comuns. A flutuação central da lesão é precoce. A defecação é incômoda, mas suportável. Rir, chorar, tossir, sentar-se sobre a lesão, ou até mesmo andar, costumam ser atividades muito dolorosas Abscesso Isquiorretal Abscessos Interesfinctérico e Submucoso Abscesso supralevantador (ou pelvirretal) Em todos os abscessos, pode existir história de supuração anal semelhante no passado, com drenagem espontânea ou profissionalmente provocada. Nos abscessos em que a pele peri e paraanal encontra-se íntegra, pode existir história de saída de pus pelo canal anal, advindo do orifício criptoglandular doente. Fístulas Pacientes com fístulas, em geral, referem história pregressa de um ou
mais abscessos anorretais mal-resolvidos. Tais fístulas caracterizam-se pela saída intermitente de pus
pelo seu orifício externo, com sintomas de ânus úmido. São sentidas como
cordões teciduais endurecidos que se dirigem para o orifício anal. Não costumam
comprometer o estado geral do paciente, a não ser em indivíduos que possuem fístulas
secundárias a doenças sistêmicas (Doença de Cröhn, Tuberculose, AIDS, etc). Podem
permanecer quiescentes por meses a fio até abscederem novamente e
drenarem pus para o
exterior. Nas fístulas em fundo cego, em geral interesfinctéricas altas (que ascendem no
espaço interesfinctérico), os sintomas costumam ser os de recidiva do abscesso
interesfinctérico. |
O
diagnóstico das supurações anorretais se faz basicamente com o exame proctológico do
paciente. Muito do que é ouvido na história da afecção pode ser levado em
consideração, mas o exame físico da região perianal e do canal anal é o pilar em que
se baseia o diagnóstico destas lesões. A retossigmoidoscopia rígida ou flexível é
sempre importante para que se obtenha maiores subsídios sobre a supuração apresentada
pelo paciente, para afastar a presença de afecções concomitantes ou para definir a
doença de base do paciente, que levou ao aparecimento do abscesso/fístula anal. Dúvidas
que surjam podem ser resolvidas com outros exames subsidiários. Abscesso perianal Abscesso Isquiorretal Abscessos Interesfinctérico e Submucoso Abscesso supralevantador (ou pelvirretal) Fístulas Um ou mais orifícios externos poderão ser observados na pele da
região peri e paraorificial como elevações avermelhadas de tecido de granulação que
contêm um pertuito de onde ocorre saída de secreção piossangüínea. Orifícios
situados próximos à borda anal são em geral ligados a fístulas
interesfinctéricas, ao
passo que os situados mais lateralmente associam-se mais freqüentemente a fístulas
transesfinctéricas. A regra de Goodsall determinará, na maioria dos casos, a direção
que a fístula assume em relação ao canal anal (vide classificação
das fístulas). A palpação dos trajetos fistulosos confirmará, na maioria dos
casos a direção que assumem. Os trajetos fibrosos são sentidos como tubos cilíndricos
retilíneos ou curvilíneos que se dirigem do orifício externo ao canal anal, na região
pectínea. Nela, a presença de um orifício interno raramente poderá ser sentida ao
toque retal como uma depressão anelar puntiforme de bordas endurecidas situada na
metade do canal anal cirúrgico. As fístulas oriundas de abscessos supralevantadores
abrem-se para a pele das nádegas, bem lateralmente em relação ao ânus. Retossigmoidoscopia Estudos de Diagnóstico por Imagem Estudos Microbiológicos Diagnóstico Diferencial |
O
tratamento dos abscessos e fístulas anorretais é eminentemente cirúrgico. Os
antibióticos, em geral de pouca valia no tratamento das supurações anorretais, são de
emprego obrigatório em pacientes portadores de doença valvular cardíaca e implantes
protéticos e nos portadores de doenças que cursam com imunossupressão (diabetes e AIDS,
por exemplo). Ocasionalmente, no entanto, os antibióticos podem ser de efeito benéfico
em pacientes com supurações anais em fase inicial (celulítica), provocando a
involução do processo. Abscessos O tratamento dos abscessos perianais e isquiorretais (os mais
comumente encontrados na clínica) é feito pela drenagem ampla da lesão sob anestesia. A
drenagem sob anestesia local deve ser evitada uma vez que não explora adequadamente a
cavidade do abscesso e não descobre a existência de orifícios fistulosos internos,
levando, comumente à recidiva do processo. A drenagem deve expor amplamente a cavidade do
abscesso e todas as lojas secundárias devem ser abertas de forma a tornar a cavidade do
abscesso única. Caso o cirurgião que proceder à drenagem não
tiver experiência em Coloproctologia, deve parar por aí e encaminhar o paciente a um profissional habilitado.
Caso possua experiência na especialidade, pode tentar explorar delicadamente a cavidade
do abscesso com um estilete maleável, à procura de seu orifício interno, e terminar o
tratamento da lesão pela fistulotomia (Vide Figura
2). Fístulas As fístulas interesfinctéricas baixas e as
transesfinctéricas baixas são tratadas pela fistulotomia e curetagem do leito
fistuloso. Neste procedimento, o teto de pele, tecido celular subcutâneo
e musculatura esfinctérica que recobre o trajeto fistuloso é
incisado ao longo deste, expondo-o, do orifício externo ao interno. A porção
interna do trajeto, a que contém o componente criptoglandular, deve ser excisada e
remetida para estudo histopatológico para afastar a presença de neoplasia maligna
(adenocarcinoma mucinoso do epitélio glandular anal), que pode ser a causa da supuração
anal (Figura
4). Cuidados Pós-Operatórios As feridas anais amplas deixadas pelo tratamento cirúrgico das
supurações anorretais devem ser copiosamente irrigadas com água corrente sob pressão
várias vezes ao dia. Tal medida reveste-se de importância uma vez que, pelo interior das
feridas, transitará matéria fecal, produto de evacuações intestinais ou
de escape espontâneo
devido à conformação dos ferimentos cirúrgicos, que funcionam como calha de drenagem
para o conteúdo do reto. Muito embora a infecção superficial destas feridas seja a
regra, não costuma haver comprometimento sistêmico do estado geral, nem tampouco
disseminação da infecção. Exceção a ser mencionada é o tratamento de supurações
anais em pacientes imunodeprimidos (diabéticos, aidéticos, pacientes em
corticoterapia,
etc...). Nestes casos, a ocorrência de fascite necrosante do períneo é uma
eventualidade que não deve ser desprezada. Para evitá-la, tais pacientes devem ser
submetidos a antibioticoterapia adjuvante de amplo espectro. Havendo sinais de fascite
necrosante, os tecidos necrosados devem ser desbridados ampla e radicalmente, tantas vezes
quantas sejam necessárias para conter o processo de destruição infecciosa dos tecidos.
Vencido este e iniciada a deposição de tecido de granulação sadio, o paciente livra-se
do perigo de progressão da doença. Um estoma proximal para derivação do trânsito
intestinal pode ser útil, mas não é imprescindível nestes casos. Mais importante que a
derivação fecal é a limpeza constante da ferida com irrigações repetidas com água
corrente sob pressão. |
Os
abscessos anais de origem cutânea raramente recidivam após a drenagem adequada. Havendo
recidiva, deve-se suspeitar estar-se diante um abscesso de origem
criptoglandular. A
recidiva de abscessos adequadamente drenados gira em torno de até 50 %, valendo então a
pena tratá-los desta maneira. O tratamento adequado de fístulas anorretais é acompanhado por índices de recidiva que devem ficar abaixo de 10 %. Graus variados de incontinência fecal são observados em pacientes submetidos ao tratamento cirúrgico de abscessos/fístulas anais, particularmente nos que sofrem secção esfinctérica, chegando a atingir até 26% dos casos operados. Fistulotomias com secção primária do esfíncter anal cursam com índices mais elevados de incontinência do que as que empregam a secção tardia com o emprego de um sedenho. Dentre os graus de incontinência observados, o mais freqüentemente encontrado é o soiling (presença de resíduos fecais na região orificial ou nas roupas íntimas). Pacientes com doença hemorroidária associada tendem a piorá-la após a fistulotomia por perda adicional da fixação mucosa dos mamilos hemorroidários remanescentes. Pode haver necessidade de submeter o paciente a algum tipo de tratamento de fixação mucosa das hemorróidas sintomáticas. A conformação anatômica das feridas anais das fistulotomias
deve obedecer o formato de uma raquete com seu cabo voltado para o orifício anal, de forma
que a primeira porção da ferida a cicatrizar seja a intra-anal. Caso a porção
extra-anal da ferida cicatrize antes, poderá haver a formação de fissura anal residual
como complicação pós-operatória. Vide a Figura
3 para observar a cicatriz linear eutrófica de uma ferida de
fistulotomia adequadamente conformada. |
1. GOLIGHER, J. - Surgery of the Anus, Rectum and
Colon, 5th ed., London, Baillière Tindall, 1984. 1186 p. 2. GOLIGHER, J. - Cirurgia do Ânus, Reto e Colo. 5.ed. São Paulo, Manole, 1990. 1277p. 3. KEIGHLEY, M.R.B. & WILLIAMS, N. S. - Surgery of the Anus, Rectum and Colon, London, W. B. Saunders Co. Ltd., 1993, 2448 p. 4. KEIGHLEY, M.R.B. & WILLIAMS, N. S. - Cirurgia do Ânus, Reto e Colo, São Paulo, Editora Manole Ltda., 1998, 2448 p. 5. ZUIDEMA, G. D. & CONDON, R. E.- Shackelfords Surgery of the Alimentary Tract, 3rd. ed., Vol. IV - Colon, Philadelphia, W. B. Saunders Co. Ltd., 1991, 426 p. 6. www.fascrs.org/brochures/anal-abscess.html (site da Sociedade Americana de Coloproctologia). Recomendado. 7. http://www.procto.com/abscess.htm (artigos sobre abscesso/fístula anal). 8. http://link.springer-ny.com/link/service/journals/00384/bibs/7012005/70120276.htm (artigo sobre ressonância nuclear magnética no diagnóstico da fístula anal). 9. http://www.inst-medicina.com.br/fistu.htm
(resumo sobre abscesso/fístula anal). |