Abscesso-Fístula Anal

Definição

  Abscesso é uma cavidade formada por paredes de tecido fibrótico ou de granulação que contém pus em seu interior.

   Fístula advém do latim fistula e quer dizer cano, flauta ou cana. É um trajeto em constante processo de granulação que une duas superfícies revestidas por tecido epitelial (cutâneo ou mucoso).

   Quando situados na região anorretal, associam-se de forma tão freqüente que vêm sendo considerados estágios evolutivos da mesma doença (abscesso na fase aguda, fístula na crônica), e recebem a denominação de abscesso-fístula anal, ou abscesso fistuloso. Entretanto, a bem da verdade, nem todo abscesso anal evolui necessariamente para uma fístula e nem todo paciente com fístula anal conta uma história pregressa de abscesso.

Etiopatogenia

Abscessos Anorretais Primários 

   Os abscessos anorretais primários originam-se ou de uma infecção cutânea ou de uma infecção de uma glândula anal.

   Os abscessos de origem cutânea normalmente evoluem da infecção de folículos pilosos ou de glândulas apócrinas e em geral são causados por estafilococos. Não costumam abrir-se para o canal anal e sua drenagem não redunda na formação de fístulas.

   Os abscessos originados da infecção de uma glândula anal (de origem criptoglandular) em geral acumulam-se no espaço interesfinctérico e dele partem para abrirem-se para o períneo, para os espaços supralevantadores, ou, ao atravessarem o esfíncter externo, para a fossa isquiorretal. Tais abscessos são causados por bactérias intestinais e evoluem para a formação de fístulas. São os mais freqüentemente observados na clínica.

      Teoria Criptoglandular

   Para entendermos a teoria que atribui à maioria dos abscessos/fístulas anais uma origem criptoglandular, devemos antes nos recordar da anatomia da região anorretal, no que diz respeito aos espaços paraanais. Clique na seta abaixo para uma revisão da anatomia anorretal.
Anatomia Anorretal

  Pois a teoria criptoglandular explica que a maioria dos abscessos anais origina-se da obstrução do óstio críptico de uma ou mais glândulas anais, provocando infecção por acúmulo de material séptico em seu interior (pela luz das glândulas anais transita material mucofecalóide). A causa da obstrução do óstio glandular na cripta anal é variada, sendo, em geral, provocada por trauma fecal ou por corpos estranhos. Os abscessos se formam, então, inicialmente no espaço interesfinctérico e dele progridem para ocupar um dos espaços paraanais. Os abscessos recebem o nome do espaço paraanal que ocupam. Vide, clicando na seta abaixo, a classificação dos abscessos anorretais.

Classificação dos abscessos anorretais

Abscesso Anorretal Secundário

   Várias afecções podem ser causa de abscessos anorretais. As doenças inflamatórias intestinais (Doença de Cröhn e Retocolite Ulcerativa Idiopática) costumam cursar com supurações anorretais, principalmente a Doença de Cröhn. A Tuberculose também é causa importante de processos infecciosos anais causados por germes específicos. Outras infecções anais específicas que levam à formação de abscessos são as causadas pela Legionella, a Actinomicose, a Amebíase, a Nocardiose, a Esquistossomose, e algumas infecções fúngicas.

   Certas afecções coloproctológicas costumam associar-se à formação de abscessos anais. São elas o Carcinoma anorretal, lesões traumáticas da região anorretal, doenças perianais (Fissura Anal; Trombose Hemorroidária Externa; complicações de hemorroidectomias, de escleroterapia hemorroidária, de ligadura elástica de hemorróidas), Salpingite, Doença Diverticular, Carcinoma do intestino grosso, Apendicite Aguda.

   Algumas doenças sistêmicas podem apresentar manifestações supurativas anais. Dentre as descritas estão a pancitopenia causada por determinadas discrasias sangüíneas e quimioterapia, a Diabetes Mellitus, a Sífilis e a AIDS.

Fístulas Anorretais

   As fístulas anorretais evoluem, em sua grande maioria, dos abscessos anorretais. Porém, há abscessos que não se complicam com a formação de fístulas e há fístulas que, pelo menos aparentemente, não evoluíram de abscessos. Para as fístulas que evoluíram de abscessos, a etiologia daquelas acompanha a que deu origem a estes. Há, no entanto, outras causas esporadicamente citadas de fístulas anorretais, como as congênitas, observadas em alguns recém-natos.

   As fístulas anorretais classificam-se segundo sua disposição horizontal e vertical. Vide, logo abaixo, a classificação das fístulas anais.

Classificação

Abscessos Anorretais  

   Os abscessos anorretais classificam-se de acordo com o espaço paraanal que ocupam, recebendo o nome deste. Sendo assim, podem ser: perianais (ou isquioanais), submucosos, interesfinctéricos, isquiorretais, e supralevantadores (ou pelvirretais).

 

Fístulas Anorretais

   As fístulas classificam-se segundo sua disposição horizontal e vertical.

      Disposição Horizontal

   As fístulas podem ser anteriores ou posteriores à linha biisquiática, que divide imaginariamente o orifício anal em duas metades e vai de uma espinha isquiática à outra. Segundo a regra de GoodSall (1900), as fístulas que possuírem orifícios externos anteriormente situados em relação à linha biisquiática terão um trajeto retilíneo e terminarão na linha pectínea, num orifício interno situado em horário correspondente ao do orifício externo (orifício externo às 2 h levará a um orifício interno às 2 h). Por outro lado, fístulas com orifícios externos situados posteriormente à linha biisquiática possuem um trajeto curvilíneo que dirige-se para uma cripta às 6 h, na linha pectínea (orifícios externos às 4, 7 ou 8 h levarão a um orifício interno às 6 h). Sendo assim, as fístulas anteriores costumam ser retilíneas e as posteriores curvilíneas. Muito embora a maioria das fístulas obedeça à regra de GoodSall, há várias exceções, que devem ser tidas em mente por ocasião do tratamento da afecção. Ocasionalmente, um abscesso que comprometa uma das fossas isquiorretais pode alastrar-se para a fossa isquiorretal contralateral, penetrando-a através do espaço retroesfinctérico. Forma, desta feita, um abscesso em ferradura.

      Disposição Vertical

   Várias classificações das fístulas, segundo a disposição vertical que assumem, foram descritas, mas, de uma forma simplificada, as fístulas podem ser basicamente subcutâneas (fistuletas), interesfinctéricas, transesfinctéricas, supraesfinctéricas e extraesfinctéricas.

   As fístulas subcutâneas estão sob a pele perianal e não comprometem o esfíncter interno. Em geral são retilíneas e posteriores, desobedecendo a regra de GoodSall. Associam-se com freqüência a fissuras anais.

   As fístulas interesfinctéricas atravessam o esfíncter interno e correm no espaço interesfinctérico, podendo nele cursar em sentido cranial ou caudal. Quando ascendem no espaço interesfinctérico, costumam terminar em fundo cego, mas podem alcançar até acima da alça formada pelo músculo puborretal, contorná-la e prosseguir no plano intermuscular até perfurá-lo, ora para o espaço supralevantador, ora através da musculatura levantadora para o interior da fossa isquiorretal. Quando seguem um sentido caudal, abrem-se para a pele perianal num orifício secundário.

   As fístulas transesfinctéricas perfuram o esfíncter interno e o externo indo atravessar o espaço isquiorretal, de onde descem e perfuram a pele perianal no orifício secundário. Podem ser altas ou baixas, de acordo com a situação de seu trajeto em relação ao anel anorretal. Podem ser em ferradura (oriundas de abscessos isquiorretais em ferradura), ao possuírem trajeto numa e noutra fossa isquiorretal, que se continua através do espaço retroesfinctérico, contornando o ânus posteriormente.

   As fístulas supraesfinctéricas iniciam-se num orifício interno situado na linha pectínea, ascendem pelo plano interesfinctérico até acima do músculo puborretal, contornam-no, perfuram a musculatura levantadora, adentrando a fossa isquiorretal, atravessam-na e perfuram a pele perianal no orifício externo.

   As fístulas extraesfinctéricas não guardam, como o próprio nome diz, relação com a musculatura esfinctérica do canal anal. São laterais a ela. Em geral, possuem origem iatrogênica. Podem também ser causadas por processos supurativos pélvicos (ginecológicos ou intestinais) que drenam por necessidade através do diafragma pélvico para uma das fossas isquiorretais e, dela, para o exterior.

Incidência

   As supurações anorretais, sejam elas abscessos ou fístulas, são mais freqüentemente encontradas em indivíduos do sexo masculino nas 3ª e 4ª décadas de vida, sendo a relação sexo masculino/sexo feminino de 3-4/1.

   As fístulas mais comumente encontradas na prática clínica diária são as interesfinctéricas.

Quadro Clínico

Abscesso perianal
   Dor, calor, rubor, aumento de volume na região do espaço perianal (isquioanal), em geral posterior ou lateralmente, e dificuldade para andar e sentar. Febre e sintomas de comprometimento do estado geral não são comuns. A flutuação central da lesão é precoce. A defecação é incômoda, mas suportável. Rir, chorar, tossir, sentar-se sobre a lesão, ou até mesmo andar, costumam ser atividades muito dolorosas

Abscesso Isquiorretal
   Dor paraanal ou de localização imprecisa no períneo, tenesmo, febre, e queda do estado geral. No início, um discreto endurecimento cutâneo paraanal é notado, que se acentua e pode ocupar toda a pele que reveste um ou ambos os espaços isquiorretais (em caso de disseminação contralateral da infecção, com a formação de abscesso em ferradura), com sinais flogísticos. A flutuação central da lesão é tardia. A defecação é moderadamente dolorosa. A drenagem espontânea da lesão é incomum, mas, quando ocorre, os sintomas regridem parcialmente.

Abscessos Interesfinctérico e Submucoso
   Dor intra-anal com tenesmo e febre e comprometimento do estado geral num paciente ansioso, porque o menor movimento exacerba seus sintomas. A defecação é extremamente dolorosa. Ocasionalmente pode haver a sensação de ânus úmido, por saída de pus pelo orifício anal. Externamente, o paciente nada consegue detectar.

Abscesso supralevantador (ou pelvirretal)
   Nos secundários a um abscesso interesfinctérico que ascendeu para o espaço supralevantador, os sinais e sintomas serão inicialmente os próprios dos abscessos interesfinctéricos. Dor pélvica poderá, na evolução, surgir e ser acompanhada de tenesmo.
   Nos secundários a processos supurativos intra-abdominais que chegam ao espaço isquiorretal após perfurarem o peritônio pélvico, penetrarem no espaço pelvirretal e perfurarem a musculatura levantadora do ânus, seu comportamento é semelhante ao do abscesso isquiorretal, com os pródromos da afecção intra-abdominal que motivou o abscesso (Apendicite Aguda supurada,
Salpingite Aguda, Diverticulite, etc.).

   Em todos os abscessos, pode existir história de supuração anal semelhante no passado, com drenagem espontânea ou profissionalmente provocada. Nos abscessos em que a pele peri e paraanal encontra-se íntegra, pode existir história de saída de pus pelo canal anal, advindo do orifício criptoglandular doente.

Fístulas

   Pacientes com fístulas, em geral, referem história pregressa de um ou mais abscessos anorretais mal-resolvidos. Tais fístulas caracterizam-se pela saída intermitente de pus pelo seu orifício externo, com sintomas de ânus úmido. São sentidas como cordões teciduais endurecidos que se dirigem para o orifício anal. Não costumam comprometer o estado geral do paciente, a não ser em indivíduos que possuem fístulas secundárias a doenças sistêmicas (Doença de Cröhn, Tuberculose, AIDS, etc). Podem permanecer quiescentes por meses a fio até abscederem novamente e drenarem pus para o exterior. Nas fístulas em fundo cego, em geral interesfinctéricas altas (que ascendem no espaço interesfinctérico), os sintomas costumam ser os de recidiva do abscesso interesfinctérico.

Diagnóstico

   O diagnóstico das supurações anorretais se faz basicamente com o exame proctológico do paciente. Muito do que é ouvido na história da afecção pode ser levado em consideração, mas o exame físico da região perianal e do canal anal é o pilar em que se baseia o diagnóstico destas lesões. A retossigmoidoscopia rígida ou flexível é sempre importante para que se obtenha maiores subsídios sobre a supuração apresentada pelo paciente, para afastar a presença de afecções concomitantes ou para definir a doença de base do paciente, que levou ao aparecimento do abscesso/fístula anal. Dúvidas que surjam podem ser resolvidas com outros exames subsidiários.

Abscesso perianal
   Haverá aumento de volume num dos espaços isquioanais, com edema cutâneo e hiperemia, apresentando-se a pele distendida e brilhante. Não é comum que o paciente apresente queda do estado geral ou febre, mas em geral muita dor é referida na região. A palpação local revela uma massa ovóide, muito dolorosa e com flutuação central. O toque retal é muito doloroso, mas não há abaulamentos do canal anal. Se houver drenagem espontânea da lesão, um orifício externo poderá ser observado, de onde ocorre saída ativa de secreção purulenta. A drenagem do abscesso, espontânea ou provocada, leva à melhora imediata dos sintomas.

Abscesso Isquiorretal
   O aumento de volume é mais volumoso e difuso, estendendo-se da região perianal para a pele das nádegas, mais lateralmente. O paciente normalmente encontra-se febril e com queda do estado geral. O toque retal revela endurecimento do canal anal num ou mais quadrantes, sem abaulamentos. A palpação externa não costuma revelar flutuação, a não ser muito tardiamente na evolução do processo infeccioso. Pode haver concomitância de acometimento da fossa isquiorretal contralateral. Raramente, um ou mais orifícios externos de drenagem espontânea poderão ser observados, porém a flutuação mantém-se (Figura 1).

Abscessos Interesfinctérico e Submucoso
   Externamente, na região orificial anal, nada é notado de anormal. O toque retal é extremamente doloroso e, em grande parte dos casos, só consegue ser realizado sob narcose. Revelará normalmente abaulamento de um ou dos dois quadrantes de uma hemicircunferência anal, em região suprapectínea. Pode haver saída de pus sobre o dedo de luva ou ativamente pelo orifício ao término do exame.

Abscesso supralevantador (ou pelvirretal)
   O exame físico do abdome normalmente revela dor à palpação do hipogástrio. A presença de abaulamento da parede retal, entre os terços inferior e médio do reto, por compressão extrínseca da coleção purulenta situada no espaço pelvirretal, pode ser observada no toque bimanual do reto ou da vagina.

Fístulas

   Um ou mais orifícios externos poderão ser observados na pele da região peri e paraorificial como elevações avermelhadas de tecido de granulação que contêm um pertuito de onde ocorre saída de secreção piossangüínea. Orifícios situados próximos à borda anal são em geral ligados a fístulas interesfinctéricas, ao passo que os situados mais lateralmente associam-se mais freqüentemente a fístulas transesfinctéricas. A regra de Goodsall determinará, na maioria dos casos, a direção que a fístula assume em relação ao canal anal (vide classificação das fístulas).  A palpação dos trajetos fistulosos confirmará, na maioria dos casos a direção que assumem. Os trajetos fibrosos são sentidos como tubos cilíndricos retilíneos ou curvilíneos que se dirigem do orifício externo ao canal anal, na região pectínea. Nela, a presença de um orifício interno raramente poderá ser sentida ao toque retal como uma depressão anelar  puntiforme de bordas endurecidas situada na metade do canal anal cirúrgico. As fístulas oriundas de abscessos supralevantadores abrem-se para a pele das nádegas, bem lateralmente em relação ao ânus.
   Fístulas primárias, em geral, são ou anteriores ou posteriores em relação ao orifício anal. As secundárias (D. de Cröhn, Tuberculose, Retocolite Ulcerativa Idiopática, Carcinoma, Actinomicose, etc.) normalmente são múltiplas, laterais e associadas a outras lesões orificiais, em geral úlceras ou fissuras.

Retossigmoidoscopia
   A retossigmoidoscopia é importante no diagnóstico de supurações anorretais para tentar a identificação do orifício interno do abscesso/fístula, para definir se este está localizado no canal anal ou no reto, para identificar a presença de doenças que possam ser responsabilizadas pelo surgimento das supurações e para afastar a presença de afecções concomitantes. Deve sempre ser realizada em qualquer paciente portador de supuração anorretal, seja ela abscesso ou fístula. Quando dor local for um sintoma impeditivo ao exame, o mesmo deve ser feito sob anestesia, imediatamente antes da eventual correção cirúrgica da afecção.

Estudos de Diagnóstico por Imagem
   A realização de fistulografia pouco ou nada adiciona ao que pode ser descoberto com um exame proctológico bem feito. Em geral não é utilizada, a não ser em casos de suspeita de fístulas extraesfinctéricas. 
   O enema opaco pode ser útil no estudo do intestino grosso para afastar, por exemplo, a presença de Doença de Cröhn em segmentos cólicos mais proximais.
   A endossonografia anal ajuda a definir a localização precisa de abscessos e fístulas interesfinctéricos altos. Não é de muita valia ainda no estudo de lesões mais lateralmente situadas (em virtude das ondas ultra-sônicas não penetrarem adequadamente no esfíncter externo).

Estudos Microbiológicos
   A coleta de material purulento oriundo do abscesso para bacterioscopia e cultura é muito importante, embora raramente realizada. Se o agente bacteriano encontrado for o Staphylococcus aureus, muito provavelmente o abscesso não evoluiu da infecção de uma glândula anal e sua simples drenagem resolverá o processo. Caso o microrganismo encontrado seja um dos que compõem a flora intestinal (enterococo, bactérias anaeróbicas), muito provavelmente está-se diante de um abscesso de origem infecciosa criptoglandular e deve-se sair à procura de seu orifício interno. Sua drenagem resultará na formação de uma fístula anal.

Diagnóstico Diferencial
   Doenças que comumente podem ser causa de confusão no diagnóstico de abscessos anorretais são as que cursam com dor  e/ou infecção anal, tais como Fissura Anal, Trombose Hemorroidária, Bartolinite, Hidradenite Supurativa e Abscesso Periuretral.

Tratamento

   O tratamento dos abscessos e fístulas anorretais é eminentemente cirúrgico. Os antibióticos, em geral de pouca valia no tratamento das supurações anorretais, são de emprego obrigatório em pacientes portadores de doença valvular cardíaca e implantes protéticos e nos portadores de doenças que cursam com imunossupressão (diabetes e AIDS, por exemplo). Ocasionalmente, no entanto, os antibióticos podem ser de efeito benéfico em pacientes com supurações anais em fase inicial (celulítica), provocando a involução do processo.

Abscessos

   O tratamento dos abscessos perianais e isquiorretais (os mais comumente encontrados na clínica) é feito pela drenagem ampla da lesão sob anestesia. A drenagem sob anestesia local deve ser evitada uma vez que não explora adequadamente a cavidade do abscesso e não descobre a existência de orifícios fistulosos internos, levando, comumente à recidiva do processo. A drenagem deve expor amplamente a cavidade do abscesso e todas as lojas secundárias devem ser abertas de forma a tornar a cavidade do abscesso única. Caso o cirurgião que proceder à drenagem não tiver experiência em Coloproctologia, deve parar por aí e encaminhar o paciente a um profissional habilitado. Caso possua experiência na especialidade, pode tentar explorar delicadamente a cavidade do abscesso com um estilete maleável, à procura de seu orifício interno, e terminar o tratamento da lesão pela fistulotomia (Vide Figura 2).
   O tratamento de abscessos interesfinctéricos é feito pela drenagem interna dos mesmos para o canal anal por meio de uma esficterectomia anal interna (uma fita muscular esfinctérica interna é retirada). É comum a recidiva quando tais abscessos são inadequadamente drenados.
   A drenagem de abscessos supralevantadores dependerá de sua extensão nos planos anorretais. Se houver extensão interesfinctérica, são tratados como os abscessos interesfinctéricos. Se a extensão for isquiorretal, são drenados para o períneo. Se o abscesso for totalmente pelvirretal, devido a uma doença supurativa intra-abdominal, poderá ser drenado para o reto ou para a vagina e um dreno tubular colocado em seu interior para auxiliar na irrigação da cavidade.

Fístulas

    As fístulas interesfinctéricas baixas e as transesfinctéricas baixas são tratadas pela fistulotomia e curetagem do leito fistuloso. Neste procedimento, o teto de pele, tecido celular subcutâneo e musculatura esfinctérica que recobre o trajeto fistuloso é incisado ao longo deste, expondo-o, do orifício externo ao interno. A porção interna do trajeto, a que contém o componente criptoglandular, deve ser excisada e remetida para estudo histopatológico para afastar a presença de neoplasia maligna (adenocarcinoma mucinoso do epitélio glandular anal), que pode ser a causa da supuração anal (Figura 4).
   As fístulas interesfinctérias altas são tratadas pela esfincterectomia anal interna, sendo excisada a tira muscular do esfíncter interno que serve de teto para o trajeto fistuloso.
   As fístulas transesfinctéricas altas, que perfuram o esfíncter externo elevadamente no canal anal, não devem ser tratadas pela fistulotomia em um só tempo, como descrito acima. Quando restar menos de 1 cm de massa muscular esfinctérica acima do local proposto de secção esfinctérica, se a fistulotomia em um só tempo for empregada, o índice de incontinência esfinctérica pós-operatória que se segue costuma ser proibitivamente elevado. Nestes casos, deve-se proceder à fistulotomia apenas no trajeto fistuloso recoberto por pele e tecido celular subcutâneo. No local recoberto por musculatura esfinctérica e por mucosa, esta última é incisada, expondo a musculatura subjacente, o trajeto fistuloso é curetado, o orifício interno da fístula é excisado e o trajeto transesfinctérico destas fístulas altas é então reparado por um sedenho tubular (cateter) de polietileno nº 4. O cateter é colocado de forma a envolver a massa muscular esfinctérica (por baixo da qual cursa o trajeto fistuloso), e suas duas extremidades são unidas com um nó de fio de náilon. O sedenho irritará o leito da ferida, que cicatrizará em torno deste. A irritação causada pela presença do sedenho causará a formação acentuada de fibrose nos tecidos que envolvem o cateter. A fibrose assim formada comprometerá a massa muscular esfinctérica reparada pelo sedenho, fixando-a ao leito da ferida. Seis a oito semanas após o primeiro tempo desta fistulotomia com reparo esfinctérico, o segundo tempo da operação será realizado. Consta da esfincterotomia da massa muscular reparada pelo sedenho, sendo, uma vez mais, o leito da ferida curetado e deixado aberto para cicatrizar por segunda intenção. Tal procedimento (o do emprego do sedenho) visa evitar que os cabos esfinctéricos seccionados afastem-se muito um do outro de forma a prevenir o desenvolvimento de incontinência anal. A fibrose provocada pela presença do sedenho fixa a musculatura reparada ao leito da ferida, de forma que, após a secção esfinctérica, o afastamento dos cabos esfinctéricos seccionados será mínimo.
   Fístulas supraesfinctéricas com extensão interesfinctérica e transesfinctérica são tratadas pela esfincterectomia interna como descrito acima, sutura do orifício fistuloso supralevantador e fistulectomia da porção do trajeto situada na fossa isquiorretal, sem secção do esfíncter externo. Podem também ser tratadas por mobilização de retalho de mucosa retal para ocluir o orifício fistuloso interno (ou técnica do avanço mucoso), sutura do orifício na musculatura levantadora e fistulectomia do trajeto no interior da fossa isquiorretal.
   Fístulas extraesfinctéricas são normalmente tratadas sob a proteção de uma colostomia proximal de derivação. Procede-se à fistulectomia do trajeto fistuloso e fechamento do orifício no reto por mobilização de retalho de mucosa retal (técnica do avanço mucoso).
   Fístulas em ferradura são tratadas pela fistulotomia de todos os trajetos encontrados, o que comumente redunda em feridas muito amplas que contornam o orifício anal posteriormente. A porção interesfinctérica ou transesfinctérica baixa do trajeto, que normalmente está ligada à região criptoglandular das 6 h, é seccionada no mesmo tempo cirúrgico, restando uma grande ferida que deverá lentamente cicatrizar por segunda intenção, levando de dois a quatro meses para selar-se completamente. Nos casos em que a porção transesfinctérica do trajeto perfurar o esfíncter externo a menos de um centímetro do anel anorretal, o músculo deverá ser reparado por um sedenho, como no tratamento da fístula transesfinctérica alta relatado acima.
   Pacientes portadores de supurações anais secundárias à Doença de Cröhn, Tuberculose e Retocolite Ulcerativa Idiopática devem ser tratados cirurgicamente de forma conservadora. Abscessos são tratados apenas pela drenagem simples das lesões e as fístulas são tratadas apenas com cuidados higiênicos locais. A doença de base deve primeiramente sofrer abordagem terapêutica, pois é comum que as supurações perianais secundárias resolvam-se espontaneamente com o controle terapêutico destas doenças inflamatórias intestinais. Controlada a doença de base e persistindo a supuração anorretal, esta então é tratada nos moldes citados acima. Técnicas de conservação esfinctérica devem ser empregadas preferencialmente nas fístulas secundárias à Doença de Cröhn, pois é comum ocorrer incontinência entre estes pacientes.

Cuidados Pós-Operatórios

   As feridas anais amplas deixadas pelo tratamento cirúrgico das supurações anorretais devem ser copiosamente irrigadas com água corrente sob pressão várias vezes ao dia. Tal medida reveste-se de importância uma vez que, pelo interior das feridas, transitará matéria fecal, produto de evacuações intestinais ou de escape espontâneo devido à conformação dos ferimentos cirúrgicos, que funcionam como calha de drenagem para o conteúdo do reto. Muito embora a infecção superficial destas feridas seja a regra, não costuma haver comprometimento sistêmico do estado geral, nem tampouco disseminação da infecção. Exceção a ser mencionada é o tratamento de supurações anais em pacientes imunodeprimidos (diabéticos, aidéticos, pacientes em corticoterapia, etc...). Nestes casos, a ocorrência de fascite necrosante do períneo é uma eventualidade que não deve ser desprezada. Para evitá-la, tais pacientes devem ser submetidos a antibioticoterapia adjuvante de amplo espectro. Havendo sinais de fascite necrosante, os tecidos necrosados devem ser desbridados ampla e radicalmente, tantas vezes quantas sejam necessárias para conter o processo de destruição infecciosa dos tecidos. Vencido este e iniciada a deposição de tecido de granulação sadio, o paciente livra-se do perigo de progressão da doença. Um estoma proximal para derivação do trânsito intestinal pode ser útil, mas não é imprescindível nestes casos. Mais importante que a derivação fecal é a limpeza constante da ferida com irrigações repetidas com água corrente sob pressão.
   Os pacientes são orientados a observarem uma dieta rica em resíduos e a empregarem moderadores do trânsito intestinal (pó da semente do psyllium ou da isphagula) para defecarem de forma fisiológica. Analgésicos são administrados sob demanda. Banhos de assento mornos exercem um efeito mitigador sobre o desconforto anal proporcionado pela presença das feridas amplas.

Prognóstico

   Os abscessos anais de origem cutânea raramente recidivam após a drenagem adequada. Havendo recidiva, deve-se suspeitar estar-se diante um abscesso de origem criptoglandular. A recidiva de abscessos adequadamente drenados gira em torno de até 50 %, valendo então a pena tratá-los desta maneira.

   O tratamento adequado de fístulas anorretais é acompanhado por índices de recidiva que devem ficar abaixo de 10 %.

   Graus variados de incontinência fecal são observados em pacientes submetidos ao tratamento cirúrgico de abscessos/fístulas anais, particularmente nos que sofrem secção esfinctérica, chegando a atingir até 26% dos casos operados. Fistulotomias com secção primária do esfíncter anal cursam com índices mais elevados de incontinência do que as que empregam a secção tardia com o emprego de um sedenho. Dentre os graus de incontinência observados, o mais freqüentemente encontrado é o soiling (presença de resíduos fecais na região orificial ou nas roupas íntimas).

   Pacientes com doença hemorroidária associada tendem a piorá-la após a fistulotomia por perda adicional da fixação mucosa dos mamilos hemorroidários remanescentes. Pode haver necessidade de submeter o paciente a algum tipo de tratamento de fixação mucosa das hemorróidas sintomáticas.

   A conformação anatômica das feridas anais das fistulotomias deve obedecer o formato de uma raquete com seu cabo voltado para o orifício anal, de forma que a primeira porção da ferida a cicatrizar seja a intra-anal. Caso a porção extra-anal da ferida cicatrize antes, poderá haver a formação de fissura anal residual como complicação pós-operatória. Vide a Figura 3 para observar a cicatriz linear eutrófica de uma ferida de fistulotomia adequadamente conformada.

Bibliografia

1. GOLIGHER, J. - Surgery of the Anus, Rectum and Colon, 5th ed., London, Baillière Tindall, 1984. 1186 p.

2. GOLIGHER, J. - Cirurgia do Ânus, Reto e Colo. 5.ed. São Paulo, Manole, 1990. 1277p.

3. KEIGHLEY, M.R.B. & WILLIAMS, N. S. - Surgery of the Anus, Rectum and Colon, London, W. B. Saunders Co. Ltd., 1993, 2448 p.

4. KEIGHLEY, M.R.B. & WILLIAMS, N. S. - Cirurgia do Ânus, Reto e Colo, São Paulo, Editora Manole Ltda., 1998, 2448 p.

5. ZUIDEMA, G. D. & CONDON, R. E.- Shackelford’s Surgery of the Alimentary Tract, 3rd. ed., Vol. IV - Colon, Philadelphia, W. B. Saunders Co. Ltd., 1991, 426 p.

6. www.fascrs.org/brochures/anal-abscess.html (site da Sociedade Americana de Coloproctologia). Recomendado.

7. http://www.procto.com/abscess.htm (artigos sobre abscesso/fístula anal).

8. http://link.springer-ny.com/link/service/journals/00384/bibs/7012005/70120276.htm (artigo sobre ressonância nuclear magnética no diagnóstico da fístula anal).

9. http://www.inst-medicina.com.br/fistu.htm (resumo sobre abscesso/fístula anal).